O número que incomoda
Cento e sessenta milhões de utilizadores ativos. Enquanto o mundo financeiro ainda se distraía com a retórica futurista das criptomoedas e com o poder crescente de fintechs privadas, o Brasil construiu a maior infraestrutura pública de pagamentos instantâneos do planeta. Não foi um aplicativo, não foi uma startup, não foi um unicórnio. Foi o Banco Central, que implantou um sistema capaz de redesenhar a arquitetura financeira de um país continental. E isso, para Washington, é um choque.
As recentes provocações de Donald Trump, misturando críticas ao rombo comercial com insinuações políticas relacionadas a Bolsonaro, fizeram barulho mas mascaram o verdadeiro incômodo. O que está em jogo não é comércio, é soberania digital. O Pix é um ativo estratégico sobre o qual os Estados Unidos não têm qualquer ingerência, influência ou via de captura corporativa. Pela primeira vez, uma grande economia emergente criou um sistema de pagamentos de massa completamente fora do alcance do complexo financeiro americano.
Este artigo explica por que um mecanismo doméstico de transferências instantâneas se tornou um ponto de tensão geopolítica, e por que sua expansão internacional ameaça estruturas de poder consolidadas.
O que é o Pix?
Tecnicamente, o Pix é simples: pagamentos instantâneos, 24 horas por dia, sete dias por semana, gratuitos para pessoas físicas e liquidados diretamente nas contas dos usuários. Não há bandeiras de cartão, não há intermediários privados definindo tarifas, não há tempo de compensação. A transação viaja de um banco para outro em segundos e sob total supervisão do BC.
Mas sua implicação civilizacional é profunda. Em poucos anos, o Brasil saltou de um sistema baseado em dinheiro vivo, DOC e TED para um ambiente em que qualquer pessoa, de qualquer classe social, pode movimentar recursos em tempo real. A adesão foi explosiva, o Pix cresceu mais rápido que WhatsApp, Instagram ou qualquer rede social na história brasileira. Milhões de pessoas sem cartão de crédito, e muitas sem sequer histórico bancário, passaram a ter acesso pleno ao universo digital de pagamentos.
A distinção essencial é essa: o Pix substitui dinheiro, não crédito. Ele não promete pontos, milhas ou parcelamentos tentadores. Ele não empurra o cidadão para a dívida como modelo de negócio. Ele simplesmente devolve ao indivíduo o controle sobre o seu próprio saldo, sem que corporações extraiam percentuais de cada gesto econômico.
A ameaça real: soberania digital vs. hegemonia financeira
I. O duopólio Visa/Mastercard em xeque
O sistema global de pagamentos eletrônicos sempre foi dominado por duas bandeiras americanas, Visa e Mastercard. Cada compra, cada pagamento online, cada transação internacional passa por uma rede controlada por esses intermediários, que retêm entre 2% e 3% de cada valor movimentado.
Além disso, o verdadeiro motor financeiro dos cartões não é o pagamento, é a dívida. No Brasil, juros rotativos que chegam a 400% ao ano mostram a dependência estrutural de um modelo que empurra sobretudo os mais pobres para ciclos de inadimplência. O cartão de crédito é um produto de endividamento, não de inclusão.
O Pix implode essa lógica. Ao oferecer pagamentos instantâneos sem custo, ele reduz drasticamente o incentivo ao uso de crédito para transações do cotidiano. Na prática, corrói uma fonte global de lucro das bandeiras americanas e demonstra que a intermediação corporativa não é inevitável.
II. “Um sistema que os EUA não conseguem colocar as mãos”
Especialistas como William Lazonick e Luis Fernandes apontaram o ponto central: o Pix é a primeira infraestrutura digital relevante de um grande país emergente totalmente imune ao alcance direto dos Estados Unidos. Não passa por servidores americanos, não depende de tecnologias proprietárias americanas, não opera sob contratos de empresas privadas americanas e não pode ser alvo de sanções unilaterais.
Para Washington, isso é perigoso. O sistema financeiro internacional funciona, em grande parte, porque a maioria dos países depende de infraestruturas controladas por corporações dos EUA. Essas estruturas, de Swift ao sistema de cartões, tornam viáveis as sanções financeiras, a vigilância de fluxos e até o congelamento de ativos.
O Pix, ao contrário, é soberano. É nacional, e demonstra que alternativas são viáveis.
III. O Brasil como laboratório do hemisfério sul
Historicamente, o Brasil imitava modelos financeiros externos. Agora, exporta. O país se tornou referência para economias emergentes que buscam reduzir dependência tecnológica. A afirmação recorrente do professor Luis Fernandes, de que o Estado deve liderar ecossistemas de inovação, e não apenas regulá-los, ganha materialidade.
E o mais incômodo para os EUA: o Pix é replicável. Não é um segredo tecnológico guardado por uma big tech. É uma decisão política. A opção de colocar a infraestrutura de pagamentos nas mãos do público, e não das corporações, pode ser copiada amanhã por qualquer país disposto a enfrentar seu próprio lobby bancário.
As falsas acusações
As críticas de Trump ao Brasil sobre comércio, sobre política doméstica, sobre supostas investigações a figuras brasileiras têm pouco ou nenhum lastro técnico. Nada disso se conecta ao Pix, que é um sistema doméstico, regulado, transparente e com padrões internacionais de segurança.
A função dessas acusações é gerar ruído. Como não há como atacar diretamente o sucesso do Pix, é preciso construir narrativas laterais que desacreditem o ambiente político brasileiro. O verdadeiro incômodo é que o sistema funciona, tem legitimidade popular e reduziu as rendas de intermediários que por décadas lucraram com tarifas abusivas.
Os EUA defendem livre mercado e inovação desde que a inovação fortaleça suas próprias corporações. Quando um país como o Brasil cria uma solução pública que reduz a intermediação americana, o discurso muda. O que as acusações revelam, portanto, não é preocupação técnica, mas medo de perder controle.
Pix como modelo global?
O efeito dominó
O Pix já inspira sistemas ao redor do mundo. A Índia, com o UPI, mostrou que soluções soberanas podem superar o volume transacionado de Visa e Mastercard. Países africanos e latino-americanos estudam modelos similares. A Europa, pressionada por big techs americanas, discute sua própria alternativa pública.
A janela está aberta: bancos centrais percebem que podem recuperar a infraestrutura dos pagamentos e abandonar a dependência de corporações internacionais.
Os limites e desafios
Mas há entraves. Pressões externas, lobbies financeiros, acordos comerciais, possíveis retaliações diplomáticas podem se intensificar. Pressões internas também existem, bancos brasileiros perderam receitas bilionárias e resistem à expansão do Pix em frentes como crédito e internacionalização.
O futuro exigirá avanços técnicos (proteção antifraude, interoperabilidade internacional) e sobretudo coragem política para manter um sistema que prioriza o interesse público.
A aposta civilizacional
O Brasil não precisa de permissão dos Estados Unidos para dialogar com outros países sobre sistemas de pagamento. A questão central é se o mundo caminhará para uma ordem financeira multipolar, com múltiplas infraestruturas soberanas coexistindo, ou se o velho modelo de concentração corporativa americana conseguirá preservar seu domínio.
A inovação que Washington não esperava
O Pix é um choque porque prova que soberania digital é possível. Mostra que um país em desenvolvimento pode construir uma solução mais barata, mais eficiente e mais inclusiva do que o sistema corporativo que domina o hemisfério norte. O incômodo americano não é irracional: é o reconhecimento de que o Brasil mostrou um caminho alternativo e que esse caminho funciona.
A hegemonia dos Estados Unidos sempre foi sustentada pelo controle de infraestruturas críticas: internet, GPS, sistemas de pagamento, dolarização do comércio internacional. Cada inovação soberana fora desse eixo enfraquece essa hegemonia.
