Durante anos, tivemos a impressão de que a inteligência artificial já tinha atingido um nível de autonomia avançado. Conversamos com sistemas competentes, formulamos pedidos em linguagem natural e vemos respostas cada vez mais úteis, e muitas vezes interpretamos isso como sinais de pensamento estruturado ou estratégia.
Na realidade, não houve engano intencional, mas sim uma leitura otimista do que estas tecnologias conseguiam fazer. Acabamos confundindo uma interface eficiente com capacidades mais profundas. E muitas vezes tratamos “chatbots” como se fossem sinônimo de inteligência.
A verdade, ainda desconfortável para muitos, é que os chamados “assistentes de IA” dos últimos anos não passavam de “Siris” melhoradas, essencialmente calculadoras sofisticadas com boa dicção. Sim, conseguiam falar. Sim, conseguiam resumir documentos, explicar conceitos, até escrever. Mas, no fim, eram ferramentas estáticas: reagiam à nossa vontade, presos num ciclo de pergunta–resposta.
Durante a última semana, Tao Zhang, fundador da Manus, apresentou a frase:
“The AI has its own computer.”
O comentário ganhou atenção por sintetizar uma mudança de enfoque no setor, mais evolutiva do que disruptiva.
Durante anos, confundimos a revolução com a conversa. Acreditávamos que um “chatbots” mais fluido era sinônimo de uma IA mais capaz. A indústria reforçou essa ideia, afinal, era fácil vender a evolução da interface como evolução da inteligência. Mas um “chatbot”, por mais eloquente que seja, continua preso ao mesmo ciclo: aguarda um prompt, o interpreta, responde. É um modelo de dependência, não de autonomia.
“Chatbot + Prompt = Agente”, esta foi a falácia que dominou o conceito. Como se adicionar mais linguagem tivesse o poder mágico de criar agência. Mas falar bem não é agir bem, e a incapacidade de agir sempre foi a prisão dos “chatbots”.
Enquanto isso, muitas empresas recorreram a workflows, scripts, playbooks e automações para ampliar o alcance dos sistemas existentes. Essas abordagens trouxeram ganhos importantes de eficiência, mas ainda operavam dentro de limites pré‑definidos. A IA seguia etapas estruturadas, sem grande margem de adaptação. Era mais semelhante a um GPS que orienta cada curva do que a um motorista que ajusta o percurso de acordo com o contexto.
O que estávamos fazendo de errado?
O setor ficou preso numa ilusão: acreditar que fluxos de trabalho cuidadosamente desenhados podiam simular autonomia. Mas workflows são apenas automatização com uma camada de linguagem natural em cima. São frágeis, rígidas, incapazes de se adaptar quando o contexto muda.
- A armadilha: programar cada etapa manualmente.
- A consequência: a IA não aprende, não corrige, não improvisa.
- O resultado: sistemas caros, frágeis e limitados.
Essa mentalidade encurralou a evolução. Para cada exceção, se criava uma nova regra. Para cada caso de uso, um fluxo separado. No fim, estavam ensinando máquinas a serem máquinas, quando deveríamos ensiná-las a serem agentes.
A falácia da conversação agravou o problema. Porque falar é barato, e a indústria confundiu eloquência com capacidade. O “chat” se tornou uma distração que escondia a superficialidade por trás: sistemas que não tinham ferramentas.
A "Foundation Architecture"
A sua proposta não é apenas mais um “modelo maior”, nem uma automação mais inteligente. Quando Zhang diz “The AI has its own computer”, ele está descrevendo uma etapa seguinte na evolução do setor, na qual a IA passa a operar com maior autonomia dentro de um ambiente próprio, sem depender exclusivamente de ações humanas para cada passo.
Como?
- A IA não recebe apenas ferramentas -> ela escolhe quais ferramentas usar.
- A IA não executa apenas comandos -> ela cria planos de ação.
- A IA não aguarda instruções -> ela aprende com a própria execução.
Este é o ciclo que torna a "Agentic AI" qualitativamente diferente:
1. Think: A IA interpreta o problema no seu contexto real.
Não se limita a reagir ao texto literal do prompt. Compreende objetivos, restrições, dependências e prioridades, como um humano faria.
2. Act: A IA escolhe e usa ferramentas autonomamente.
Não depende de “workflows” pré-definidos. Se precisa de abrir um editor de código, ela abre. Se precisa de consultar uma API, ela consulta. Se precisa de escrever um relatório, ela escreve.
3. Learn: A IA melhora continuamente.
Cada ação gera feedback. Cada falha gera adaptação. É um organismo computacional que evolui, não um conjunto de regras engessadas.
O Efeito de Rede das "Atomic Capabilities"
Cada nova ferramenta que a IA aprende é uma nova “capacidade atômica”. Um bloco de competência. Quando combinadas, essas capacidades se multiplicam exponencialmente.
É como ensinar a alguém não apenas novas palavras, mas novas línguas inteiras. Essa arquitetura é a diferença entre executar comandos e resolver problemas.
Com agentes verdadeiramente autônomos, entramos numa fase que até agora era ficção: a era da "Proactive Agency", a IA que age antes que nós percebamos a necessidade.
O que é isso?
- Uma IA que detecta conflitos na sua agenda e resolve-os sem ser pedida.
- Um sistema que identifica um bug iminente em um código e o corrige antes que o servidor ceda.
- Um assistente que prepara relatórios e análises antecipando as suas reuniões da semana.
A metáfora muda: deixamos o paradigma do “sob demanda” e entramos no da “antecipação inteligente”.
Mas essa transição exige maturidade:
- Autonomia não é ausência de controle.
- Proatividade não é vigilância.
Precisamos de limites transparentes, auditáveis e configuráveis. Não para conter a IA, mas para garantir que ela maximiza o potencial do humano, em vez de substituí-lo.
O Fator Humano não é substituição
Há quem tema que agentes autônomos tornem trabalhadores obsoletos. É um mecanismo de defesa comum, e historicamente errado.
Toda grande tecnologia amplificou capacidades humanas:
- Transportes ampliaram o nosso alcance físico.
- Computadores ampliaram o nosso alcance cognitivo.
- Internet ampliou o nosso alcance informacional.
Agentes ampliam o nosso alcance operacional. A pergunta não é: “A IA vai tirar o meu lugar?”. A pergunta é: “O que posso construir quando a minha capacidade operacional for multiplicada por 100?”
Imagine um médico acompanhando centenas de pacientes em paralelo, com agentes que detectam padrões antes de sintomas surgirem. Imagine um engenheiro gerindo infraestruturas inteiras, apoiado por agentes que monitorizam, corrigem e otimizam fluxos em tempo real. Imagine criativos capazes de materializar ideias complexas sem barreiras técnicas.
Esta é a visão central da Manus: "Extending Human Reach."
Para líderes, a mudança de mentalidade é crítica. De “Como preservo empregos?” para “Como multiplico impacto?”. O perigo não está nos agentes, está em permanecer no modelo antigo enquanto o mundo avança.
Obstáculos
A Manus identifica três barreiras fundamentais para a plena adoção da "Agentic AI":
1. Compartilhamento de contexto
A IA precisa de memória viva entre tarefas, não apenas histórico de chat, mas compreensão contínua do ambiente, do estado, das metas e das dependências.
2. Exposição de ferramentas
Precisamos de APIs, permissões e interfaces verdadeiramente "agentic-ready".
3. Construção de colaborações
Agentes precisam se comunicar. O desafio, portanto, não é tecnológico, é de coordenação.
Aprendemos a falar com máquinas. E agora, as máquinas aprenderam a fazer.
